segunda-feira, 3 de maio de 2010

Terry Pratchett sobre Neil Gaiman


Eu estou lendo esse livro aí do lado, porque sou muito fã de Neil Gaiman, e tudo que eu posso ler escrito por ele, ou sobre ele, eu procuro ler. Eu tive uma surpresa muito agradável quando vi que o prefácio desse livro foi escrito por Terry Pratchett, um outro autor que eu adoro.
Ponho aqui uma tradução do prefácio, que mais do que uma apresentação de Neil Gaiman, é uma amostra da genialidade de Terry Pratchett:

Uma levemente usada mais ainda adorável apresentação
por Terry Pratchett


O
que posso dizer sobre Neil Gaiman que já não tenha sido dito em The Morbid Imagination: Five Case Studies?
Bem, ele não é um gênio, é melhor do que isso.
Ele não é um mago, em outras palavras, mas um prestidigitador.
Magos não têm que trabalhar. Eles agitam suas mãos,e a mágica acontece. Mas prestidigitadores, bom... prestidigitadores trabalham muito pesado. Eles passam muito tempo da sua juventude observando, atentamente, os melhores prestidigitadores do seu dia. Eles procuram velhos livros de truques e, sendo prestidigitadores naturais, lêem todo o resto também, porque a própria história é um show de mágica. Eles observam como as pessoas pensam, e os muitos modos como não pensam. Eles aprendem o uso sutil de molas, e como abrir enormes e pesadas portas de templos com um toque, e como fazer as trombetas soarem.
E eles ficam no centro do palco e te maravilham com bandeiras de todas as nações e fumaça e espelhos, e você grita: "S-sensacional! Como ele consegue? O que aconteceu com o elefante? Cadê o coelho? Ele quebrou o meu relógio mesmo?"
E na fileira de trás nós, os outros prestidigitadores, sussurramos: "Muito bem! Aquela não é uma variação da Meia levitante de Praga? Aquele não era um dos Espelhos Espíritas de Pasqual, onde a moça na verdade não está lá? Mas de onde veio aquela espada flamejante?
E nós nos perguntamos se existe mágica, afinal das contas...
Eu conheci Neil em 1985, quando A Cor da Magia tinha acabado de ser lançado.Foi a minha primeira entrevista como um autor. Neil estava trabalhando como um jornalista freelance e tinha as feições pálidas de alguém que sentou nas exibições de muitos filmes ruins para poder se sustentar das cochinhas de frango frias que eram servidas na festa de depois (e para construir a sua lista de contatos, que agora é do tamanho da Bíblia e tem gente muito mais interessante). Ele estava fazendo jornalismo para comer, o que é uma boa maneira de aprender jornalismo. Provavelmente a única maneira, aliás.
Ele também tinha um chapéu muito feio. Era um chapéu de feltro cinza. Chapéu não combinava com ele. Não havia união natural entre chapéu e homem. Aquela foi a primeira e a última vez que eu vi o chapéu. Como se soubesse subconscientemente disso, ele vivia esquecendo-o e largando pra trás em restaurantes. Um dia, ele nunca mais voltou para buscá-lo. Eu coloquei isso aqui para o fã sério aí fora: se você procurar bem, com paciência, você pode encontrar um restaurante pequeno em Londres com um chapeú de feltro cinza empoeirado no fundo de uma prateleira. Quem sabe o que acontecerá se você o experimentar?
Bom, de qualquer jeito, nós nos demos muito bem. Difícil dizer porque, mas no fundo estava um prazer e maravilhamento com a pura estranheza do universo, em histórias, em detalhes obscuros, em estranhos velhos livros em livrarias desconsideradas. Nós permanecemos em contato.

páginas sendo arrancaedas de um calendário. Sabe, a gente não vê mais isso em filmes...
E uma coisa levou a outra e ele se tornou famoso com quadrinhos, e Discworld virou um sucesso, e um dia ele me mandou umas seis páginas de um conto, dizendo que não sabia como continuar, e eu também não, e cerca de um ano depois eu o tirei da gaveta e vi o que acontecia depois, mesmo se ainda não conseguisse ver como tudo terminaria, e nós o escrevemos juntos e era Belas Maldições. Foi feito por dois caras que não tinham nada a perder ao se divertir. Nós não fizemos pelo dinheiro.
Mas, no fim das contas, ganhamos muito dinheiro.
...ei, deixa eu contar sobre as bizarrices, como quando ele ficou conosco para a publicação, e nós ouvimos alguma coisa e entramos no seu quarto e dois dos nossos pombos brancos tinham entrado e não conseguiam sair; eles estavam entrando em pânico ao redor do quarto e Neil estava acordando numa tempestade de penas brancas como a neve dizendo: "Wstfgl?" que é o seu vocábulário normal pra antes do meio dia. Ou a vez em que nós estávamos num bar e ele encontrou as Mulheres Aranhas. Ou a vez quando numa viagem nós ficamos num hotel onde de manhã fiquei sabendo que a TV dele tinha mostrado estranhos shows de bondagem bissexual, enquanto a minha só tinha mostrado reprises de Mr. Ed. e o momento, ao vivo , quando nós percebemos que um mal alimentado apresentador de rádio Nova Iorquino achava que Belas Maldições não era um trabalho de ficção...

(corte para um trem, seguindo em frente com bastante barulho. Essa é outra cena que eles não mostram em filmes hoje em dia...)
E lá estávamos nós, 10 anos depois, viajando pela Suécia e conversando sobre a trama de Deuses Americanos (ele) e O fabuloso Maurício (eu), Provavelmente falando ao mesmo tempo. Era como nos velhos tempos. Um de nós diz: "Eu não sei como lidar com essa parte da trama"; o outro escuta e diz:"A solução, Gafanhoto, está na maneira como você coloca o problema. Quer um café?"
Muita coisa aconteceu naqueles 10 anos. Ele tinha deixado o mundo dos quadrinhos abalado, e nunca será o mesmo. O efeito foi parecido com o de Tolkien no romance de fantasia - tudo depois é de algum modo influenciado. Eu lembro de uma vez durante a turnê de Belas Maldições nos Estados Unidos perambular numa loja de quadrinhos. Nós tínhamos autografado para muitos fãs de quadrinhos, alguns claramente confusos com o conceito d"'essa história sem figuras", e eu andei pelas prateleiras conferindo a oposição. Foi quando eu percebi que ele é bom. Há uma delicadeza de toque, um bisturi sutil que é a marca registrada do seu trabalho.
E quando eu ouvi a premissa de Deuses Americanos eu queria escrevê-lo tanto que até conseguia sentir o gosto...
Quando eu li Coraline, eu enxerguei uma animação lindamente desenhada; se eu fechar meus olhos eu consigo ver a casa, ou o piquenique especial das bonecas. Não é de admirar que ele escreva roteiros agora; breve, eu espero que alguém seja inteligente o suficiente para deixá-lo dirigir. Quando eu li o livro eu me lembrei que histórias infanits são aonde o verdadeiro terror reside. Meus pesadelos de infância teriam sido muito sem graça sem Walt Disney, e alguns detalhes sobre olhos de botões pretos naquele livro fazem uma pequena parte do cérebro adulto querer ir se esconder atrás do sofá. Mas o propósito do livro não é o terror, mas vencê-lo.
Pode ser uma surpresa pra muitos descobrir que Neil ou é um cara muito simpático, muito acessível ou então um ator incrível. Às vezes ele tira os óculos escuros. A jaqueta de couro não tenho certeza; acho que uma vez eu o vi num smoking, ou pode ter sido outra pessoa.
Ele adota a visão de que manhãs acontecem pras outras pessoas. Eu acho que uma vez o vi no café da manhã, mas possivelmente era so alguém um pouco parecido com ele que estava com o rosto enterrado num prato de feijões assados. Ele gosta de sushi, e gosta de pessoas também, só que não cruas; ele é gentil com fãs que não são chatos completos, e gosta de conversar com pessoas que sabem conversar. Não parece que ele tem 40 anos, talvez os 40 tenham acontecido com outra pessoa também. Ou talvez haja um retrato especial trancado no sótão.
Divirta-se. Você está nas mãos de um prestidigitador genial. Ou, possivelmente, um mago.

PS. Ele adora de verdade se você pedir pra ele assinar a sua acabada, estimada cópia de Belas Maldições que caiu na banheira pelo menos uma vez e só está inteira por causa de um durex muito velho e amarelado. Você sabe qual.

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Wagner, H.; Golden, C.; Bissette, S.R. Prince of stories: the many worlds of Neil Gaiman, Primeira Edição, St. Martin's Press, 2008

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